A identificação nominal do
beneficiário da despesa, sem prévia comprovação de necessidade e
atendimento a interesse individual ou coletivo, coloca o servidor
público em situação de exagerada vulnerabilidade e fere, sem qualquer
contrapartida razoável, seu direito à privacidade e à segurança.
“Dom Quixote de La Mancha”, no ano de 1605.
O livro narra as aventuras de um homem que, apaixonado pelos chamados
“Romances de Cavalaria”, experimenta o declínio de suas faculdades
mentais e decide se tornar um cavaleiro andante, passando a imitar seus
heróis favoritos e vivenciar uma série de aventuras, sempre desmentidas
pela entediante realidade.
Em uma de suas batalhas, Dom Quixote se depara com dezenas de moinhos
de vento, que supõe serem gigantes, transformados em moinhos por
Frestão, o sábio feiticeiro. Mesmo alertado por seu fiel escudeiro
Sancho Pança, Dom Quixote passa a atacar os moinhos, sempre dedicando a
coragem de seu atos à sua amada, Dulcinéia del Toboso.
No Brasil, periódica e convenientemente, são apontados à população
alguns inimigos públicos, a quem se atribui a responsabilidade pelas
mazelas da sociedade. Neste momento de múltiplas (e majoritariamente
justas) reivindicações salariais, os malfeitores escolhidos, mais uma
vez, são os servidores públicos.
O feitiço para transformá-los em gigantes foi lançado no corpo do
Decreto 7.724/2012, da lavra da Presidente da República, que determinou a
divulgação, pela internet e de forma individualizada, da remuneração de
cada um deles. A justificativa para o ato é a necessidade de controle,
pela população, dos valores pagos aos servidores públicos. Há grande
expectativa de que, de agora em diante, o Brasil experimentará uma nova
fase no que concerne à moralidade nos gastos públicos.
A sociedade acompanha, curiosa, a identificação de cada inimigo.
Afinal, tudo indica que os tais gigantes são os responsáveis pela má
distribuição da arrecadação tributária no Brasil.
Já discordando deste ilusionismo, lanço a seguinte pergunta: a
identificação dos rendimentos dos servidores públicos, de forma
individualizada, é realmente uma medida que concretiza princípios de
nossa Constituição?
A Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação) teve por objetivo regulamentar os artigos 5º, XXXIII[1]; 37, §3º, II[2] e 216, § 2o[3] da Constituição da República, que tratam do acesso a documentos e informações da Administração pública.
Da análise destes dispositivos constitucionais, já se extrai uma
primeira conclusão: o acesso a informações e registros administrativos é
um direito que se condiciona à existência de quatro vetores.
Identifico-os a seguir:
a) existência de interesse, particular ou coletivo (art. 5º, XXX);
b) inexistência de indícios de que o acesso à informação poderá
mitigar a segurança do Estado ou da sociedade (art. 5º, XXX),
c) não ocorrência de violação à intimidade, privacidade, honra ou imagem de alguém (art. 37, §3º, II c/c art. 5º, X);
d) existência de necessidade (art. 216, § 2º).
Sob este prisma, não tenho dúvidas de que a Administração pública deve
franquear à sociedade o acesso aos seus gastos com pessoal.
Contudo, considero que a identificação nominal do beneficiário da
despesa, sem prévia comprovação de necessidade e atendimento a interesse
individual ou coletivo, coloca o servidor público em situação de
exagerada vulnerabilidade e fere, sem qualquer contrapartida razoável,
seu direito à privacidade e à segurança, mostrando-se contrária aos
valores constitucionais que norteiam o direito à informação.
Talvez tenha sido esta, aliás, a interpretação feita pelo legislador quando da elaboração da Lei 12.527/2011, ao deixar de normatizar o acesso individualizado aos valores percebidos por servidores públicos.
Vale ressaltar que este diploma legal, além de não determinar a divulgação dos nomes
dos agentes públicos acompanhados de suas respectivas remunerações,
inseriu no ordenamento jurídico pátrio o conceito de informação pessoal
(art. 4, IV[4]) e determinou sua proteção (art. 6º, III[5]).
Importa enfatizar: considera-se pessoal a informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável (art. 4º, IV, da Lei 12.527/2011) e cabe ao poder público assegurar sua proteção (art. 6º, III, do mesmo diploma legal).
Se a identificação nominal do servidor e de seus vencimentos viola a
Constituição da República e a própria Lei de Acesso à Informação,
através de que feitiço ingressou em nosso ordenamento jurídico?
Confundus[6]? Imperius[7]?
Malgrado a proteção à informação pessoal, o Decreto 7.724/12, “regulamentador” da Lei 12.527/2011, dispôs que:
Art. 7º É dever dos órgãos e entidades promover, independente de
requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de
interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas,
observado o disposto nos arts. 7º e 8º da Lei nº 12.527, de 2011.
(…)
§ 3º Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1º, informações sobre:
VI - remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto,
graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de
custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como
proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; (grifei).
No Direito brasileiro, a diferença substancial entre lei e decreto está
na aptidão daquela para inovar o ordenamento jurídico e deste para, tão
somente, fixar as "regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em
execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, ou para
desenvolver os preceitos constantes da lei, expressos ou implícitos,
dentro da órbita por ela circunscrita, isto é, as diretrizes, em
pormenor, por ela determinadas"[8].
Neste diapasão, o Decreto 7.724/12, dado o seu caráter de
secundariedade normativa, subordina-se à lei que regulamenta, e, nestes
moldes, não poderia ter expedido
qualquer comando contra, extra, praeter ou ultra legem, não sendo,
portando, aplicável no que tange à divulgação individualizada das
remunerações.
É claro, repito, que a Administração deve tornar públicos todos os seus
gastos com pessoal, permitindo que qualquer pessoa possa identificar
fraudes ou erros, devendo respeito, no entanto, aos princípios
constitucionais e limites legais que regem a matéria.
Observo, entretanto, que a medida, mesmo irregular, tem arrancado
previsíveis aplausos dos mais diversos seguimentos sociais. Foi bem
orquestrada e lança ao povo os inimigos que o momento político exige,
conduzindo os brasileiros a mais uma batalha contra moinhos de vento.
Notas
[1] XXXIII - todos têm direito a receber dos
órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado;
[2] § 3º - A lei disciplinará as formas de
participação do usuário na administração pública direta e indireta,
regulando especialmente:
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações
sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
[3] § 2º - Cabem à administração pública, na
forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências
para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
[4] IV - informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável;
[5] Art. 6º Cabe aos órgãos e entidades do
poder público, observadas as normas e procedimentos específicos
aplicáveis, assegurar a:
(…)
III - proteção da informação sigilosa e da informação pessoal,
observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual
restrição de acesso.
[6] Confundus: “É um feitiço para confundir a
mente da vitima de varias formas diferentes, o feitiço pode ser usado de
inumeras maneiras, seja para fazer alguem errar oque ia dizer, ou se
confundir durante um duelo, é um feitiço que envolve a confusão mental
rapida de alguem, é considerada uma magia de alto nivel, pois pode ser
usada legalmente, e com muita capacidade, é quase como um Imperius.”.
(De Wikipedia, “Lista de feitiços em Harry Potter”).
[7] Imperius – “Permite a quem conjurou o
feitiço controlar as vontades de seu inimigo,podendo obrigá-lo a fazer
coisas desde uma reverência,até mesmo a se tornar um aliado. Harry
descreve como uma sensação de profundo relaxamento, em que não a nada,
nenhuma preocupação, a única coisa presente é a voz do conjurador do
feitiço mandando o enfeitiçado fazer o que ele manda.”. (De Wikipedia,
“Lista de feitiços em Harry Potter”).
[8] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de.
Princípios Gerais de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 353. v. I.
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